Rubem Alves: Confissões de um protestante obstinado

rafael faria
15 min readDec 21, 2021

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Arte de Jimmy Ovadia

“…o vento sopra onde quer…” (Jo 3.8)

Memórias não podem ser esquecidas. O passado, uma vez vivido, entra em nosso sangue, molda o nosso corpo, escolhe nossas palavras. É inútil renega-lo. As cicatrizes e os sorrisos permanecem. Os olhos dos que sofreram e amaram serão, para sempre, diferentes de todos os outros. Resta-nos fazer as pazes com aquilo que já fomos, reconhecendo que, de um jeito ou de outro, aquilo que já fomos continua vivo em nós, seja sob a forma de demônios que queremos exorcizar e esquecer, sem sucesso, seja sob a forma de memórias que preservamos com saudade e nos fazem sorrir com esperança.

Digo isto como prelúdio a uma confissão: sou protestante. Sou porque fui. Mesmo quando me rebelo e denuncio. Minha estória não me deixa outra alternativa. Sou o que sou em meio às marcas de um passado. Mesmo que eu não quisesse, este passado continuaria a dormir comigo, assombrando-me, às vezes, com pesadelos e fúria, às vezes, fazendo-me sonhar com coisas ternas e verdadeiras.

Sou protestante. Hoje, muito diferente do que fui. Não há retornos. Tão diferente que muitos me contestarão, recusando-me cidadania no mundo da Reforma. Alguns me denunciarão como espião ou traidor. Outros permitirão minha presença, mas exigirão o meu silêncio. O que me faz duvidar de mim mesmo e suspeitar, quem sabe, que eu seja de fato um apóstata. Mas aí protestantes de outros lugares me confirmam, ouvindo-me, dando-me as mãos, o pão e o vinho…

Sou protestante. Perderão o seu tempo aqueles que tentarem descobrir as raízes de minha fé em catecismos ou teólogos. O amor e a dor vêm primeiro. É só muito mais tarde que a gente pensa a fim de entender o sofrido e o desejado. Tudo começa com canções de alegria e tristeza, muito antes de podermos chamar nossas ideias pelo nome. E é por isto que a gente não pode deixar de ser o que foi. Mudar de ideia é muito fácil. Mas ninguém pode fazer de conta que alegrias e tristezas nunca existiram. É assim na religião. Salmos e poemas vêm primeiro. Eles pertencem às origens, preservam aquele espanto primordial frente ao sagrado. Já os tratados de teologia e as explicações doutrinárias são construções tardias, depois que passou o amor e a dor se foi, depois que o espanto acabou e ficou o vazio…

Não foi no cérebro que me tornei protestante. Ao contrário, minha fé é companheira de imagens, memórias, perfumes, músicas, solidões, retiros, caminhadas por montanhas e beira-mar; rostos, sorrisos, acampamentos de trabalho em favelas; funerais, injustiças, esperanças enterradas, algumas ressuscitadas; certezas de lealdade a toda prova… E aqui eu teria de ir colocando nomes: presenças ausentes com quem compartilho a minha vida. É isto. O decisivo não é a ideia. O decisivo é a pessoa que a gente invoca, não importa que já esteja morta…

Dizendo de outra forma: não sou protestante em virtude das ideias que tenho. Não somos o que somos por termos as ideias que temos. Temos as ideias que temos por sermos o que somos. Primeiro vem a vida, depois vem o pensar…

É muito importante entender isto. Não é curioso que tanto os inquisidores quanto São Francisco tenham se chamado “católicos”? Não é curioso que tanto as pessoas que caçaram e mataram bruxas em Salém, quanto Schweitzer e Martin Luther King, tenham se denominado “protestantes”? Afinal de contas, que magia estranha é esta que faz com que uma mesma religião seja coisas tão opostas?

Religiões são como mesas de banquetes: tudo está preparado e há desde os pratos rigorosamente destinados às dietas vegetarianas até as gorduras chamuscadas nas brasas para aqueles que gostam de carne… E os fiéis se aproximam, cada qual com o seu pratinho, e escolhem… Veja, observe: Já vão saindo com seus pratos cheios. Os lobos, os inquisidores, os caçadores de bruxas trazem nos seus pratos coisas que não se encontram nos pratos dos cordeiros e das vítimas… Escolheram as ideias que mais apeteciam aos seus paladares e menos ofendiam aos seus estômagos.

Claro que se trata de uma parábola. Estou querendo simplesmente dizer que, assim como as pessoas constroem as suas dietas a partir das exigências dos seus corpos, também elas constroem as suas teologias a partir do que elas são… E é por isto que há tantos catolicismos diferentes, dos lobos e das ovelhas… É por isto que há tantos protestantismos diferentes, dos lobos e das ovelhas… É claro que os lobos se dão bem, não importa a cor de suas peles. E as ovelhas são sempre ovelhas, e se entendem… Seria bom tentar começar a entender o ecumenismo a partir deste ponto, deixando os debates sobre ideias para depois. Há muitas formas de organizar as experiências que o protestantismo guarda. Os inquisidores colocarão fogo nos olhos do seu deus e com o fogo consumirão aqueles que se atrevem a ser diferentes. Os pacificadores colocarão o fogo nas lanternas e nos fogões, para iluminar, aquecer, cozer…

Minha primeira experiência/memória protestante tem a ver com um hino. Meu pai tinha ido à falência. Tudo se perdeu. Morávamos numa casa velha, emprestada, daquelas fazendas antigas do sul de Minas, sem água encanada, sem privada, sem luz elétrica. Era o cheiro de querosene das lamparinas, do estrume das vacas, do capim-gordura, do milho fermentado, o barulho do monjolo, da água que caía do rego, os camundongos e os cães que ladravam pelas noites a dentro… Mas, como disse a Cecília Meireles, “quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece?” De um homem falido fogem os amigos. E foi então que apareceu lá naquela solidão um evangelista, o senhor Firmino. Do que ele dizia nada me restou: eu só tinha três anos. Mas guardei a música que me pareceu a estória de um homem de nome esquisito, João Totrono… Depois descobri que era “Junto ao trono de Deus, preparado, tens cristão um lugar para ti…” Iniciam-se minhas memórias com uma canção que ficou sendo sacramento de uma presença gratuita e estranha, quando os rostos familiares ficaram raros.

Chamei a memória da música não porque minha biografia tenha qualquer importância, mas porque, puxando um pouco mais os fios, a gente acaba por agarrar a história. Esbarramos com a Reforma Protestante e vemos todo mundo cantando. A Reforma aconteceu através da música. Pode ser que Lutero e outros líderes intelectuais do movimento tivessem pensado com rigor os seus pensamentos, mas pessoas comuns cantaram a Reforma antes de entende-la. Quem canta é mais perigoso do que quem só pensa. O canto põe asas nos pés. Haverá outra razão para as marchas militares que põem uma mesma cadência nos passos? O canto mobiliza o corpo, imobiliza o medo, e transforma gestos solitários em caminhadas solidárias. E Lutero colocou sua fé em hinos que eram repetidos e decorados, mesmo por aqueles que — crianças, talvez — não entendiam bem as ideias. A confiança se cristalizou em imagens. Qualquer um podia entender o que significava cantar “Castelo forte é nosso Deus, espada e bom escudo…”

O espírito protestante é um espírito cantante. Símbolo disto é um homem simples, João Sebastião Bach, que juntou em suas cantatas a palavras evangélica com a grandiosidade estrutural da música. Tanto ou mais que os documentos da Reforma, a música de Bach é minha amiga. Eu a invoco sempre nos momentos de confusão. Fé cantada é melhor que fé falada. E descubro que o meu protestantismo tem muito a ver com o fato de que a música desse homem é como uma encantação mágica que desperta em mim coisas boas, adormecidas, das quais frequentemente me esqueço. E fico melhor do que sou.

Compreendo que alguém poderá dizer que gosto por Bach é coisa refinada, de gente que pode se educar, o que está proibido à maioria… É possível. Mas Bach foi apenas um dos muitos que cantaram e continuam a cantar. E esta é a razão porque não me envergonho de pular de Bach para uma casinha de pau-a-pique, lá perto de Miguel Pereira, ao fim de uma trilha pelo meio do pasto, no buraco da noite, em que irmãos pentecostais de cabo de enxada e palavra reta cantavam sua fé singela e descomplicada, ao som das cordas, dos pandeiros, dos bumbos. E de lá voo para o último domingo de Páscoa, numa missa católica para crianças, em que, para o meu espanto, repentinamente a Igreja explodiu num “Glória, Glória, Aleluia”, sacudido por dezenas ou centenas de chocalhos, triângulos, pandeiros e tambores infantis, do jeitinho que manda o Salmo 150, tão lido e tão desacreditado… Que coisa mais ecumênica pode existir que a música? Para além de tudo o que nos divide, ela dá testemunho de que nós queremos cantar, cantar juntos, cantar que é bom viver… Se a teologia tivesse sido cantada, é certo que menos fogueiras teriam sido acesas… E descobri assim o Protestantismo como esse espírito cantante, que vive desde a cantata de Bach até a cantoria dos que não sabem distinguir bemol de sustenido. Pode ser que ninguém acredite, mas é fato: foi um padre que me fez sentir protestante pela primeira vez.

Eu não pedi para ser protestante. Eram os meus pais que me levavam, meio à força, para a Escola Dominical. Aí aconteceu um acidente. Num grupo escolar, primeiro ano, lá no sul de Minas. Num belo dia, sem aviso prévio, a professora entrou em classe acompanhada de um padre com batina preta. “Quem é que vai para a confissão e a comunhão?”, perguntou ele com voz taquaral clerical. A meninada toda levantou a mão. Menos eu e o Estelino, que era espírita. Todo mundo olhou espantado para a gente, enquanto o sangue subia ao rosto e os nossos olhos se enterravam no chão. Miseravelmente diferente, sem saber por quê, enquanto os outros cochichavam risos contra a minha singularidade. E o padre e a sua batina foram crescendo, crescendo, sem parar, e o menino indefeso foi sentindo a dor do estigma. Eu era diferente. Nunca me esqueci.

Mas aí aconteceu uma coisa gozada, que a psicanálise deve explicar. A vergonha de ser diferente virou o orgulho de ser diferente. Foi então que eu, sem saber, me senti protestante pela primeira vez. De fato, o protestantismo tem muito a ver com a coragem para assumir a própria individualidade. Como aconteceu com um monge teimoso, que não dobrava o pescoço por medo da espada, mas fazia o corpo todo andar e falar ao som suave da voz da consciência. Este teimoso individualismo teve um gosto doce à minha boca, e nunca mais o abandonei.

De tão longe não é fácil entender o que significam os gestos do monge teimoso. Com eles Lutero não estava criando algo novo, mas simplesmente “des-cobrindo” um espírito protestante já em gestação.

Foi necessária muita coragem para contrapor a voz da consciência individual à voz das autoridades constituídas. Fazendo isto, ele declarava que, se existe um referencial sagrado para o comportamento, se existe um lugar de verdade para o pensamento, tais lugares não se confundem com os lugares do poder, não importa que o poder tenha sido legitimamente constituído. O segredo e a verdade não habitam as instituições, mas invadem o nosso mundo através da consciência.

Isso é subversão. Lutero colocou o mundo de cabeça para baixo. Se o Espírito de Deus não é monopólio de instituições, não é gerenciado por organizações, não é distribuído por burocracias, todas elas perdem a sua aura sagrada. Não podem mais pretender ser eternas.

O Espírito é algo diferente, livre. Como o vento, imprevisível, assopra onde quer, não se sabe donde vem, nem para onde vai. Só podemos ficar à espera, quais meninos com suas pipas na mão…

Ter consciência é isto: ficar à espera, aguardando o movimento do vento… Tudo é imprevisível. Nada é comparável à imponente mobilidade da catedral gótica, cuja beleza se encontra exatamente no fato de haver ela congelado o espírito de um certo momento da história. Mas ficar à espera do vento é esperar por um movimento, não se sabendo nem onde e nem quando ele se dará…

Duas coisas ficavam assim ligadas.

De um lado, a liberdade de Deus. Pode parecer coisa abstrata mas não é. Dizer que Deus é livre significa que ele se ri de nossas tentativas de conhece-lo pela nossa teologia, aprisiona-lo em instituições, administra-lo pela burocracia. Ele sempre anda por lugares não previstos, na companhia de gente estranha, fazendo coisas meio esquisitas, tal e qual Jesus Cristo. Traz do cativeiro um povo sem eira nem beira, faz uma mulher estéril dar à luz, dá vida a um vale de ossos secos, faz uma virgem engravidar, dá tombos nos fortes, põe os fracos nos lugares altos, confunde os sábios, joga mau cheiro sobre a piedade dos que confiam muito em si mesmos, transforma heróis em vilões e vilões em heróis… E os protestantes, conhecedores deste prazer divino nas inversões súbitas, poderiam prever que ele acabaria por subverter a própria Igreja Católica, derrubando blocos de pedra com o seu sopro suave e fazendo nascer flores entre as fendas das lápides, assombrando os bem-nascidos e fazendo rir as crianças… E se o Espírito de Deus anda por lá, quem somos nós para dizer não?

E, do outro lado, a consciência da pessoa, esta estranha capacidade que nos distingue dos bichos, e nos permite perceber as coisas novas e diferentes que o Espírito está fazendo, e mesmo ouvir a sua voz — sinais da gravidez universal da criação, o que faz a gente ficar feliz (Rm 8.22). Era por causa da consciência que Lutero falava que todos os fieis são sacerdotes. Acabou-se o monopólio do divino. Cada cristão, mesmo uma criança amedrontada, pode ficar de pé e dizer: “Aqui fico. Não posso ir contra a voz da minha consciência.”

Se os protestantes tivessem sido espertos e sensíveis à sua própria teologia, eles, há muito, teriam assumido a dianteira, e espalhado por este mundo a fora um sem número de Comunidades Eclesiais de Base. Por que é que bem-nascidos cardeais, bispos conservadores e padres dantanho ficam arrepiados com esta coisa? Isto é coisa de protestante, percebem eles muito bem. Dizia o falecido Gustavo Corção, com toda razão, que a Igreja Católica estava se protestantizando. E parece que nunca disse coisa tão verdadeira.

As comunidades protestantes primitivas eram de base, no sentido de que nasciam do povo comum — cada crente era um sacerdote. Eu não tenho medo de dizer que a Igreja Católica está passando hoje pela Reforma — mais uma façanha do vento suave… Com uma diferença. No século XVI a Igreja recuou, e deu aquilo que todos conhecemos. Depois, os protestantes tentaram converter os católicos no varejo, um a um. Mas o Espírito ficou meio impaciente, e tratou de fazer a conversão por atacado. Pela Igreja toda sopra a liberdade de Deus e a voz da consciência: os fieis estão à escuta, tentando ler os sinais dos tempos…

Quantas coisas nos conta a ideia protestante de que todos os homens são sacerdotes!

A primeira coisa que ela faz é colocar um enorme ponto de interrogação sobre as cabeças das pessoas que se dizem autoridades religiosas, políticas, militares, não importa. De saída é necessário dizer que a autoridade é algo estranho ao espírito do Novo Testamento. Quem quiser ser o maior, que seja o servo. Substituir a espada pelo lava-pés. Deus, poder e verdade, abre mão de tudo, esvazia-se… Leia-se o Novo Testamento e veja-se o papel que as autoridades desempenham ali, a partir de Herodes, mandando matar as crianças, até as autoridades romanas e autoridades judias, mandando matar Jesus. Parece que as pessoas em posição de autoridade são mais suscetíveis à idolatria e à crueldade. É isto que nos conta a história. É claro que a ordem é necessária para tornar possível a nossa convivência. E destas coisas, surge, aos poucos, o espírito da democracia, expressão do doloroso reconhecimento da necessidade da autoridade e da determinação de manter sempre a autoridade no seu devido lugar: não em cima, mas em baixo, como serva e funcionária do corpo sacerdotal — claro! — o povo todo, cada um deles um sacerdote.

Depois ela nos dá permissão para pensar com ousadia os pensamentos mais loucos e avançados. Reprimir o pensamento é reprimir a consciência, é colocar a autoridade estabelecida num nível mais alto que a liberdade do indivíduo. Sei que isto horroriza aqueles que habitam os espaços já organizados e disciplinados da vida eclesial. Tudo já está previsto. O futuro não pode ser diferente do passado. A casa está em ordem e os velhos descansam tranquilos. Mas, de repente, uma classe de jardim de infância invade a casa e tudo fica em movimento, borbulhante de vida. Cada peça de museu se transforma num brinquedo. Cada canto sagrado vira um esconderijo para o jogo de esconder. A ordem cristalizada se transforma na vitalidade indomável… É claro que há muitos que começam a sofrer vertigens, enquanto outros tratam de expulsar a criançada… “Se não vos converterdes, e não vos fizerdes como crianças…”

Por séculos o ideal da Igreja foi o de construir jardins geométricos, monocultura, em que tudo permanecesse sob o estrito controle do jardineiro. Agora os protestantes dizem que o Espírito é um semeador sem muito gosto pelos traçados geométricos, que mistura tudo quanto é tipo de semente e as espalha ao vento… E elas brotam na mais fantástica explosão de cores, na desordem maravilhosamente bela que surge da vida… E surge então o mandamento para a pluralidade e a diferença. Os especialistas em cortar pedras dirão que a pluralidade e a diferença são sinais de desintegração. Afinal, se os tijolos não forem todos iguais, a casa cai… Mas quem é que falou em construir casas? Da mesma forma como a vida, na sua unidade, produz amores perfeitos, cravos-de-defunto, girassóis, musgos, cactos, caquis, bananas, jacas, algas, buchas, erva-doce, losna, abóboras e cerejas, também o Espírito de Deus, na sua unidade e vitalidade, pode produzir as mais variadas formas de vida, sejam as culturas indígenas, as dançantes comunidades pentecostais africanas, ordens monásticas, experiências de contracultura, as religiões populares, e até mesmo os estilos de vida em que nos sentimos em casa. E com os estilos de vida surgem novas formas de pensar e novas formas de falar sobre Deus, sobre Cristo, sobre a salvação… E quem seria aquele que tomaria da espada para liquidar os diferentes? Com que direito? Quem quer que se atreva a liquidar os dissidentes está possuído da ilusão de ser o detentor do monopólio do divino, e sucumbe à tentação e à crueldade da espada — eclesial ou secular, não importa.

Posso bem perceber o espanto incrédulo nos olhos do meu leitor, protestante de muitos anos, que pela primeira vez ouve coisas tão insólitas. E ele procurará ao seu redor para ver onde é que este protestantismo se encontra. Entre os Batistas? Na Igreja Presbiteriana? Quem sabe nas Comunidades Protestantes? Que dizer dos Metodistas? E vamos caminhando, inutilmente, reconhecendo as pedras, identificando a voz da autoridade, ouvindo o barulho típico da tesoura de poder que corta um broto novo… O futuro deve ser uma continuação do passado. As mesmas ideias. A verdade já foi cristalizada em séculos idos. Proibidos de explorar o novo, de pensar o insólito… E as pessoas vão ficando tristes, pensando todos os dias os mesmos pensamentos, fazendo todos os dias as mesmas coisas, orando as mesmas orações espontâneas formadas com a colagem de frases feitas e estereotipadas, sem coragem para contar as coisas que acontecem no fundo da sua alma, porque isto pode perturbar a simetria da rotina…

E eu me lembro então da última coisa que quero dizer sobre a liberdade de Deus, coisa que todo protestante repete. Poucos, entretanto, tomam o risco. Salvação pela graça. Salvação não vai de baixo para cima. Salvação vem de cima para baixo. Deus nos ama. Deus resolveu o problema, por conta própria. Isto significa que ele não tem livro caixa, onde entram nossos débitos ou créditos. Os débitos são perdoados e os créditos ignorados. Salvação segundo o modelo do livro caixa é o que os teólogos denominavam “salvação pelas obras”. E quem é que pode estar tranquilo, sem recursos para pedir uma informação sobre o saldo da conta? Salvação pela graça significa: das questões depois da morte Deus já cuidou. Por isto é ocioso gastar pensamento e aflição com discussões sobre a mobília do céu e a temperatura do inferno. Mas sobra tudo o mais que nos ocupar: a preservação da natureza, a arte, a fogueira das armas, para transforma-las em arados e podadeiras; a luta contra os exploradores, a proteção dos oprimidos, o prazer da liturgia, da música, da comunidade, o brinquedo da teologia. A salvação pela graça significa: é inútil e desnecessários nos preocuparmos com o além. O além pertence a Deus, nossos braços não vão até lá. E Deus já resolveu o assunto, em amor. Somos então livres para sermos totalmente deste mundo, fazendo as coisas que a consciência nos comanda.

Imagino a sua perplexidade que pergunta se não existirá coisa mais oposta ao espírito cristão de amor que o individualismo que leva as pessoas a caminhar de forma solitária, cercadas de muros. Terei de responder que você tem razão. Mas terei de lhe perguntar, em troca, se existe coisa mais oposta à comunhão que a sociabilidade fácil daqueles que se satisfazem com a conversa ociosa da representação de papeis… Toda palavra genuína deve nascer do silêncio. Não posso crer nas declarações de solidariedade daqueles que não frequentam a solidão de sua própria consciência. Não, o individualismo da Reforma nasce de um profundo respeito pela pessoa, porque cada pessoa é uma “máscara” de Cristo, Cristo se fazendo presente, disfarçado… E assim, quando alguém é desrespeitado, violentado, torturado, quando alguém passa fome e não tem onde morar, é o próprio Cristo que está aí…

Sou protestante.

Mas você já deve ter percebido que minha bem-amada está ausente. Meu protestantismo é uma saudade e uma esperança. Esta é a razão por que sinto uma enorme necessidade de ler os pais da Reforma e uma compulsão de ouvir o vento do espírito, pra ver onde é que poderei empinar o papagaio…

Por enquanto, o espírito cantante e brincalhão do protestantismo (sob disfarce, é claro) está fazendo das suas na Igreja Católica. Como eu lhe disse, o Espírito é livre… Talvez ele tenha querido brincar conosco. Talvez não tenhamos querido brincar com ele. E ele está se indo. Ele, porém, volta de vez em quando — e haverá de voltar para ficar.

É, eu sou protestante.

Rubem Alves

Depoimento retirado da revista Tempo e Presença, Publicação Mensal do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), número 169, de Julho de 1981. Transcrito pelo Eduardo Chaves em seu blog (http://liberal.space/) e reproduzido aqui com seu consentimento.

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